
Madame Satã: um corpo preto em movimento
O ano era 1907, em Glória do Goitá, interior de Pernambuco. Diante da situação precária em que uma família se encontrava após a morte do marido, Firmina Teresa decidiu trocar um dos filhos dezoito por uma égua. Foi prometido à mãe que o filho, batizado de João Francisco, teria casa e estudo. Entretanto, apesar da promessa, o menino passou a viver em situação de semiescravidão na fazenda do negociante de cavalos.Após um ano, durante uma viagem à Paraíba, João conheceu uma senhora que o chamou a fugir da fazenda. Ela pretendia abrir uma pensão no Rio de Janeiro e prometeu-lhe emprego e moradia. Ao chegar ao Rio, após a apresentação do chamado Hotel Itabaiana, na Rua Moraes e Vale, 27, no Largo da Lapa, sua realidade mudou um pouco em comparação com a vida na fazenda: João continuou vivendo como escravizado. Exausto, decidiu fugir e passou a viver nas ruas da cidade.Em entrevista para o jornal O Pasquim, em 1971, João Francisco dos Santos (1900–76), conhecido popularmente como Madame Satã, relembra o início de sua trajetória: “Fiquei com ela de 1908 a 1913 e a diferença entre Dona Felicidade e Seu Laureano é que, para ele, eu tomava conta dos cavalos o dia inteiro e, para ela, eu lavava os pratos, lavava a cozinha, carregava as marmitas e fazia compras no Mercado São José, que ficava na praça XV. Também o dia inteiro. E não tinha folga, não ganhava nada e era escravo do mesmo jeito.”A situação de vulnerabilidade o incentivou a trabalhar por conta própria no bairro boêmio e operário da Lapa, onde viveu boa parte de sua vida.Na juventude, aprendeu a ser garçonete, capoeirista, cozinheiro, camareiro e segurança dos bordéis da região, o que o levou a se envolver em muitos desentendimentos. Ao ser questionado pelo jornalista Millôr Fernandes sobre a quantidade de brigas nas quais já havia se envolvido, ele esclarece: “Ah, que eu não fui preso, devo ter umas três mil.”Para além das profissões que desenvolveu, João Francisco também cometia pequenos delitos, como furtos e roubos, atraindo a atenção da polícia e contribuindo para a consolidação do seu estereótipo de “malandro”.De acordo com ele, malandro era aquele que frequentava botequins e cabarés, não fugia de brigas, mesmo quando envolviam a polícia, não entregava os comparsas e, quando necessário, recorria à navalha.Na cidade do Rio de Janeiro do início do século 20, marcada por altos índices de desemprego, pobreza e desigualdade social, muitos homens adotaram a “malandragem” como estratégia de sobrevivência. Praticavam o jogo, o trabalho sexual, cometiam furtos, compunham sambas ou aplicavam, por vezes, algum golpe. Essa imagem era associada, normalmente, a homens vistos como viris e corajosos.Entretanto, a associação de João Francisco com a malandragem carioca faria sua ficha criminal crescer consideravelmente, acumulando 29 processos (três homicídios, 13 agressões, dois furtos, três desacatos, quatro resistências à prisão, um ultraje ao pudor e um porte de arma, entre outros), totalizando 27 anos e 8 meses de penas, intercaladas entre 1928 e 1965.O primeiro crime que o levou para trás das grades foi o assassinato de um vigilante noturno. Segundo a versão apresentada por João, após ser agredido com um cassetete e chamado de “viado” diversas vezes em um boteco localizado no térreo do sobrado onde morava, na esquina da Rua do Lavradio com a Avenida Mem de Sá, ele sacou sua pistola e atirou no guarda, que caiu, bateu a cabeça na calçada e morreu. Pelo crime, foi condenado a 16 anos de prisão, dos quais cumpriu dois anos e três meses, após alegar legítima defesa.Press enter or click to view image in full sizePintura de Madame Satã no muro de uma de suas antigas residências, localizada na Rua Morais e Vale, na região da Lapa. Reprodução: acervo pessoal.Após esse episódio, sua fama de malandro se consolidou. Passou a ser conhecido como implacável, um matador de policiais. Mesmo depois de cumprir a pena, afirmou ter sido alvo de diversas opressões da polícia. “Quer dizer que você tinha raiva da opressão policial? Sempre tive e morro com ela”, declarou em entrevista para O Pasquim.De acordo com o professor e pesquisador da Brown University, historiador brasilianista, militante da causa LGBTQIAPN+ e autor do artigo O Pasquim e Madame Satã, a ‘rainha’ negra da boemia brasileira, James Naylor Green, o personagem teria criado essa identidade como forma de proteção:“Então, eu acho que ele também, da sua maneira, no Rio dos anos 30, criou esse personagem para ser respeitado e protegido contra a agressão que sofria.”Apesar do estereótipo de malandro, João Francisco também cultivava outra identidade: a de artista transformista, que o tornaria conhecido como Madame Satã. Ele iniciou a carreira no espetáculo Loucos em Copacabana como a Mulata do Balacochê, período em que se dizia realizado e afastado da vida boêmia da Lapa.Essa fase foi interrompida em 1928, quando foi preso. Dez anos depois, já em liberdade, amigos o convenceram a participar do concurso de fantasias do Teatro República, promovido pelos Caçadores de Veados. João Francisco venceu o desfile com uma fantasia de morcego adornada com lantejoulas.Semanas depois, foi preso no Passeio Público e acabou reconhecido por um policial que o vira no carnaval e o associou ao filme Madame Satã, então em cartaz. O apelido rapidamente se espalhou pela cidade. Inicialmente, foi resistente e chegou a reagir com agressividade, mas terminou por adotá-lo: “Comparando meu apelido com os das outras, vi que o meu era muito mais bonito. É marcante.”Madame Satã era assumidamente homossexual, como afirma em relato: “Sempre fui, sou e serei (…). Eu fui homem algumas vezes e fui bicha algumas vezes. Eu gostei mais de ser bicha.”Ainda, o historiador brasilianista James N. Green reflete sobre a identificação de Satã com a figura feminina: “ele, como transformista, na boate, brincando, cantando, tendo essa identificação com o gênero feminino e querendo utilizar essa fantasia que não podia fazer todos os dias durante o carnaval, dentro da boate, porque senão seria preso, acusado de vadiagem, atentado à moral e aos bons costumes.”Press enter or click to view image in full sizeMadame Satã com uma estola de plumas vermelhas, pintura localizada na rua da Lapa. Reprodução: acervo pessoal.Green também explica sua motivação para pesquisar sobre a vida e a atuação de Satã: “Então, eu queria muito enfatizar ele também porque era um personagem muito interessante, sendo primeiramente muito pobre, do Nordeste, a maneira que ele foi tratado e como ele criou essa imagem de um homem perigoso, mas também uma bicha que gostava de dar, ou seja, essa noção de ser passivo, que corrompia totalmente os estereótipos sobre o homossexual, que é uma pessoa passiva, que dá, que é muito afeminada, etc.”O pesquisador finaliza analisando por que esse personagem permanece tão fascinante até os dias atuais, sendo um dos poucos exemplos populares sobre os quais se têm informações. Ele afirma: “Madame Satã furou esse conjunto de ideias, estereótipos imaginários sobre a homossexualidade, e acho que por isso não é somente fascinante nos anos 30.” Em seguida, completa:“Ele continua fascinante hoje em dia, com o elemento de ser preto, muito marginalizado na sociedade. Toda a sua vida ele vivia às margens, como a grande maioria dos homens pretos, que foram os mais marginalizados na sociedade. Ele vivia nesse mundo, ele sobrevivia, mas era muito difícil.”
Publicado: 2025-12-22 22:57:00
fonte: analuisaalves.medium.com







